A Poesia em Moçambique
De forma geral, a independência criou, por parte de uma nova elite política e intelectual, a necessidade da elaboração das identidades africanas dentro do Continente, e deste perante o mundo. Para isso, era imprescindível retornar ao passado em busca de elementos legitimadores da nova realidade e encontrar heróis fundadores e feitos maravilhosos dos novos países africanos e da própria África.
Em Moçambique, a partir de 1945 (até 1964, aproximadamente) começaram a revelar-se os poetas que compõem o “segundo paradigma ou segunda fase” da literatura moçambicana (o primeiro preparou o terreno para essa “poética da moçambicanidade”), designação utilizada por Carmen Tindó Ribeiro Secco, que lhes ressalta uma produção que
recebe fortes influências do Neo-Realismo, do Renascimento Negro e do Movimento da Negritude, fazendo a apologia da solidariedade, denunciando o racismo, o colonialismo, a exploração nas minas da áfrica do Sul” (...); muitos poetas preferem cantar a terra e a natureza, metáforas da “moçambicanidade”, ou o negro, exaltando o orgulho da cor (SECCO, 1999, p. 17 e 21).
Para Patrick Chabal
Embora nas colônias africanas portuguesas a negritude nunca tenha tomado a forma amplificada e exaltada que assumiu no império francês, houve um processo semelhante, mesmo que não tenha havido ‘influência direta’. A negritude é, dessa forma, a mais explícita e manifesta fase de nacionalismo cultural que se pode encontrar na literatura africana moderna (1994, p. 55).
Com base nessas óticas, Orlando Mendes e Noémia de Sousa são considerados “pioneiros da moderna poesia moçambicana” (FERREIRA, 1977, p. 73). O primeiro, mergulha sua poética na “seiva elementar/De África nos versos que digo/ E os homens saibam cantar” (Apud. FERREIRA, p. 73). No caso de Noémia de Sousa, toda a sua produção (dezenas de poemas produzidos entre 1949 e 1952 encontram-se dispersos pela imprensa moçambicana) alimenta-se das raízes africanas, é “África da cabeça aos pés”: “Eu quero conhecer-te melhor, /minha África profunda e imortal”; “Ó minha África misteriosa e natural, /minha virgem violentada, /Minha Mãe! (ibidem, p. 74-5). Destaca Maria Nazareth Soares Fonseca que a “consciência de uma negritude, ainda que sem os particularismos do movimento criado por Aimé Césaire e Léopold Senghor, na França, atravessa os versos da poeta moçambicana” (2002, p. 39). Filha de mãe negra, Noémia transfere essa maternidade para a África como um todo, elegendo a pele africana como o seu sinal: no poema “Negra”, o corpo feminino, diverso mas sintetizado numa única palavra, MÃE, acaba por representar o corpo do continente africano; no poema “Sangue negro”, também estabelecendo a homologia entre “minha África” e “minha Mãe”, o eu lírico assume o seu sangue negro-escravo e a sua origem:
E nada mais foi preciso, que o feitiço ímpar
dos teus tantãs de guerra chamando,
dundundundun-tã-tã-dun-dun-dun-tã-tã,
nada mais que a loucura elementar
dos teus batuques bárbaros, terrivelmente belos
_ para que eu vibrasse,
_ para que eu gritasse,
_par que eu sentisse, funda, no sangue, a tua voz, Mãe!
E, vencida reconhecesse os nossos elos...
E regressasse à minha origem milenar (FERREIRA, 1985, p.92).
Em poema antológico, “Deixa passar o meu povo” (que dialoga com o spiritual Let my people go, que tematiza o cativeiro de Moisés e do seu povo no Egito dos faraós), explicita-se a relação da poética de Noémia com os pressupostos do Harlem Renaissance:
Noite morna de Moçambique
E sons longínquos de marimba chegam até mim
_certos e constantes _
Vindos nem eu sei donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
Abro o rádio e deixo-me embalar...
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Marian cantam para mim
Spirituals negros de Harlem.
“Let my people go”
_ oh deixa passar o meu povo (...)
Nervosamente,
Sento-me à mesa e escrevo...
(Dentro de mim,
Deixa passar o meu povo (...)
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar (...)
Misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças (...)
Pegando na minha mão e me obrigando a escrever
Com o fel que me vem da revolta. (...)
E enquanto me vierem de Harlem
vozes de lamentação
e os meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insônia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
“let my people go”
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO
(Poesia negra de expressão portuguesa, 1953. Apud FERREIRA, 1985, p. 94-5).
Paul Robeson e Marian Anderson são figuras do mundo musical, citadas também por Craveirinha.